Las Ficheras

O bairro onde todos querem estar

Visto durante décadas como uma zona de copos, droga e prostituição, o Cais do Sodré está a renovar-se e há cada vez mais empresários interessados em apostar no bairro. Depois dos bares, estão a aparecer os restaurantes para clientes mais exigentes e no futuro prevê-se a abertura de novos espaços comerciais, com uma aposta forte ligada à arte.

Todos os dias a cena repete-se. “Desculpe, conhece alguém que tenha um espaço aqui no Cais do Sodré para alugar?”. A pergunta, sempre a mesma, começou a tornar-se frequente de há dois anos para cá – depois da inauguração da Pensão Amor, Bar da Velha Senhora e Povo –, naquilo que os comerciantes locais chamam de ‘a nova vaga’ de popularidade do bairro lisboeta. Às vezes, no mesmo dia, chegam a ser “cinco, seis ou sete” pessoas diferentes a entrar na pastelaria Quatro Estações, no Largo de São Paulo, só para tentar obter uma lista das lojas disponíveis para arrendar.

 

Há 16 anos no ‘café do bairro’, como lhe chamam os outros comerciantes, Paulo Graça é, dizem, a pessoa certa com quem falar. A que sabe praticamente tudo do que se passa naqueles quarteirões. Por isso, lá vai dizendo a quem pergunta quem se deve contactar. “Aquelas lojas [e aponta para o lado esquerdo do Largo] pertencem todas a um banco, mas é uma agência [imobiliária] que as está a alugar”, comenta.

Na Branco sobre Branco, loja e ateliê de decoração na Rua de São Paulo, as arquitectas de interior Paula Laranjo e Vera Moreira também são questionadas diariamente com o mesmo assunto. E Victor Miguel, empregado há 52 anos na Vestotel e Servivest, casas de fardas e uniformes na Rua Nova do Carvalho, diz o mesmo ao SOL: “Todos os dias entram aqui pessoas a perguntar se conheço quem queira alugar as suas lojas”. Normalmente, constatar este interesse deixaria entusiasmada qualquer pessoa que viu, ao longo de cinco décadas, tantos negócios morrer, mas Victor Miguel tem muitas reservas. “Querem todos o mesmo: abrir uma casa de petiscos e vender bebidas. Não há ninguém interessado em trazer para aqui uma sapataria, um cabeleireiro, uma loja de roupa…”, lamenta. Se Victor Miguel ainda vai estar atrás do balcão da loja das fardas quando essa desejada transformação acontecer só o tempo o dirá, mas há planos para que o cenário futuro do Cais do Sodré não inclua apenas ‘copos’.

Tânia Figueiredo e Joana Champalimaud, ambas de 27 anos, são duas das novas inquilinas do Largo de São Paulo. Instaladas num antiga loja de ferragens, abriram há um mês a Galeria, uma pop-up store que quer dar uma morada temporária a pequenas marcas e start-ups portuguesas que vendem, maioritariamente, os seus produtos online. É verdade que também servem refeições ligeiras e vendem cerveja para a rua, mas pretendem ser mais do que apenas um bar. O espaço funciona num esquema rotativo e, de duas em duas semanas, mudam os ‘inquilinos’ para dar lugar a novos projectos. “Com esta renovação os clientes também ficam a ganhar porque têm novidades constantes”, comenta Tânia.

Noite no Cais do Sodré.

Restaurantes e galerias

Quando a ideia de iniciar o projecto surgiu, a localização foi imediatamente decidida. “Ainda pensámos muito no Chiado e no Príncipe Real, mas além do Cais do Sodré também ser o centro da cidade, as rendas não são tão altas. É uma zona com óptimos acessos e, depois, este Largo tem imensa magia e história”, diz a jovem empreendedora. A par disso, Tânia acredita que esta zona da cidade tem “imenso potencial” e, num futuro próximo, “vai ter bastante movimento”.

Há cinco anos, quando mudaram a Branco sobre Branco da Avenida da Liberdade para a Rua de São Paulo, Vera Moreira e Paula Laranjo já imaginavam que, mais cedo ou mais tarde, o Cais do Sodré iria sofrer uma transformação. “Toda a gente nos dizia que Santos é que era, especialmente nesta área da decoração, mas percebemos logo que fazia mais sentido estarmos aqui. É uma zona histórica muito forte e estamos no centro da cidade”, refere Paula.

O músico Rui Pregal da Cunha partilha desta convicção. Há três semanas abriu o restaurante mexicano Las Ficheras, mas a localização foi mais circunstancial. Luz, sócia do antigo Hérois do Mar, passava todos os dias na Rua dos Remolares de bicicleta a caminho do Terreiro do Paço onde a dupla, juntamente com outros quatro amigos, tem o restaurante Can the Can. Numa dessas deslocações matinais, percebeu que a loja onde comprava cabos de aço para prender as mesas da esplanada no Can the Can estava fechada. Ainda sem qualquer anúncio de aluguer à porta, Luz começou imediatamente a tentar descobrir de quem era o espaço e, em poucas semanas, já o estava a arrendar. Mesmo sem ter ideia do que ela e os sócios poderiam fazer ali.

Depois de muita ponderação, decidiram-se por um restaurante mexicano, “um tipo de comida que não há muito em Lisboa”. Para desenvolverem a ideia, foram todos de férias para o México e de lá trouxeram o conceito que dá nome ao restaurante. “Las Ficheras é como são conhecidas as mulheres que trabalhavam nos cabarés mexicanos, a quem os homens entregavam uma ficha, semelhante à dos casinos, em troca de uma bebida, companhia ou uma dança”, explica Luz. “Achámos logo que tinha tudo a ver”, ou não fosse a história do Cais do Sodré feita de culturas marginais ligadas ao alterne.

Este é o primeiro projecto de Pregal da Cunha e amigos no bairro, mas há mais coisas planeadas. Para já nenhum dos sócios quer revelar o que aí vem, mas Sara Barreto, gerente do Las Ficheras, confirma que a loja ao lado da Galeria, no Largo de São Paulo, está alugada por eles. Tal como aconteceu com o restaurante, o que vai ali nascer ainda está por decidir, mas Pregal da Cunha deixa pistas: “Para se tornarem interessantes e conseguirem sobreviver, os bairros têm que ter várias dinâmicas. Não pode ser só copos. Têm de ser pequenos microcosmos com tudo, desde comes e bebes até galerias de arte e coisas para a comunidade”.

Essa mesma chamada de atenção já foi feita à Câmara Municipal de Lisboa pela Associação Cais do Sodré, criada há dois anos por vários comerciantes locais, nomeadamente os da Rua Nova do Carvalho, conhecida por todos como a ‘rua cor-de-rosa’. Gonçalo Riscado, sócio do Musicbox e do restaurante Povo e porta-voz desta organização, é o primeiro a dizer que não gosta de restringir nada, mas “para se proteger os bairros deve haver um limite sobre o que pode existir numa determinada área de negócio”. Especialmente quando o lado negativo desse excesso já se começa a sentir.

Diversão desde os anos 70

Zona de diversão e espaços de entretenimento há várias décadas, “desde os tempos dos marinheiros”, com o Jamaica “a tornar-se um ponto de referência no final dos anos 70”, a noite do Cais do Sodré passou, depois, por um longo período de abandono. “Aquilo que as pessoas da época se queixam é que os marinheiros passaram a ter de soprar no balão quando regressavam aos navios. Antes era beber até cair…”.

Mas há sete anos, quando o Musicbox se instalou no extinto Texas (uma antiga casa de alterne) e o_Europa reabriu, o Cais do Sodré recuperou algum do movimento passado. “Tirando o Jamaica, que teve sempre um público hiper ecléctico e fiel, tudo à volta não funcionava. Há sete anos não se passava nada aqui e o ambiente era de alguma decadência”, recorda Gonçalo Riscado.

Apostando numa programação periódica de espectáculos, essencialmente de música, uma vez que a área de trabalho de Gonçalo e dos seus sócios sempre se focou mais na área artística e não na noite, o Musicbox “trouxe uma energia nova”, com o bairro a receber um público cada vez mais diversificado. E esse novo buzz despertou o interesse para outros projectos aparecerem.

Como em tudo há sempre quem reprove e alguns moradores, mesmo que em número reduzido (na ‘rua cor-de-rosa’ vivem três pessoas), queixaram-se, sobretudo, dos after hours do Europa.  Por isso, em Janeiro, quando a Câmara determinou o fim dos after hours (que entretanto se propagaram por todo o quarteirão) a decisão foi contestada pelos comerciantes afectados, mas aplaudida pelos moradores e lojistas mais antigos.

Além do barulho e das pessoas “mal educadas” que frequentavam as discotecas até ao meio-dia, José Vicente considera que a medida também ajudou a diminuir a prostituição no bairro. “Agora praticamente acabou”. Antónia (nome fictício), de 53 anos, que há 17 anos vem vender o corpo para o Cais do Sodré, confirma que há cada vez menos mulheres nestas ruas, mas diz que o negócio também se reduziu por causa da crescente popularidade da ‘rua cor-de-rosa’. “Agora anda aqui muita gente e os clientes têm medo de serem vistos. E os bares agora também não nos deixam entrar. Só o Liverpool”.

O boom com a Pensão Amor

Esta azáfama ganhou dimensões maiores há dois anos, com a abertura da Pensão Amor. Seguiram-se Sol e Pesca, Bar da Velha Senhora e Povo. “Com esta última vaga, criou-se aqui uma dinâmica mais actual e pensámos que fazia sentido fazer qualquer coisa em conjunto, até porque são tudo projectos que chegam com conteúdo e com identidades muito fortes”, contextualiza Gonçalo_Riscado, em nome da Associação Cais do Sodré. E assim nasceu a ‘rua cor-de-rosa’.

Como, simultaneamente, a autarquia decidiu fechar a rua ao trânsito, os comerciantes juntaram-se e pintaram o asfalto de rosa, numa “referência”, também, “às ‘meninas’” que por ali andavam. Por ter sido feita por amadores, a pintura durou apenas duas semanas. Mas em Setembro, desta vez com o apoio técnico da Câmara e o patrocínio da Absolut Vodka, reinaugurou-se o projecto, com o cor-de-rosa a ser agora definitivo.

Desde essa altura o número de inaugurações tem sido crescente. Só neste mês de Dezembro foram quatro os novos espaços a abrir no Cais do Sodré, somando-se a isso a renovação de outros estabelecimentos mais antigos. Como em tudo o que é popular, “há um lado muito positivo em termos de intervenção e reabilitação, mas há riscos”. Segundo Gonçalo Riscado há um evidente: “A questão do botellón”.

Tal como aconteceu no Bairro Alto, “a possibilidade de transformar qualquer espaço com dois metros quadrados numa mangueira de venda de cerveja para a rua, com música e preços a disputarem a atenção dos clientes, representa destruição e uma oferta muito mais desinteressante”. Basta dar um passeio pelos quarteirões anexos à ‘rua cor-de-rosa’ para verificar a quantidade de restaurantes que abriram uma janela para a rua com uma torre de imperial a servir até altas horas, ou os estabelecimentos com os tais dois metros quadrados a vender cerveja a 0,50 cêntimos. “O conceito é não ter conceito nenhum e o Cais do Sodré está a ficar cercado. O licenciamento zero é uma coisa fantástica, mas um restaurante não é um bar e um bar não é uma discoteca e, historicamente, o Cais sempre funcionou para dentro, com as boites e as casas de alterne”.

Apesar do ‘botellómetro’, como lhe chama Gonçalo Riscado, estar a crescer no Cais do Sodré, a verdade é que, equilibradamente, também estão a nascer projectos com conceitos interessantes e que valorizam a oferta de diversão e cultural. O Sabotage, na Rua de São Paulo, promove concertos de rock and roll desde Abril; a loja de discos Trem Azul, na Rua do Alecrim há nove anos, tem agora um bar e um palco com programação semanal e o jazz já não é filho único; Catarina Portas instalou mais um dos seus Quiosque do Refresco no Largo de São Paulo; O Bom, o Mau e o Vilão, igualmente na Rua do Alecrim, abriu há três semanas e também aposta numa oferta cultural semanal, com ciclos de cinema, concertos de músicos nacionais, actuações de DJ e exposições rotativas de artistas emergentes de Belas Artes.

A par disso, a MainSide, empresa que explora a Pensão Amor (e, em Alcântara, a Lx Factory), abriu há uma semana o restaurante Casa de Pasto, com carta assinada pelo chef Diogo Noronha, que saiu em Setembro do Pedro e o Lobo. José Carvalho, administrador da MainSide, explica que a Casa de Pasto, situada no primeiro andar do n.º 20 da Rua de São Paulo, é “uma recriação de um tipo de restauração que havia em Lisboa”. “O restaurante resguardado da rua, mas com um ambiente mais familiar. Uma espécie de sala de jantar fora de casa”.

Com este restaurante, a MainSide reforça a sua aposta no_Cais do Sodré, até porque considera o bairro a sua “casa”. “Sempre acreditámos muito nesta zona e a própria situação de abandono e má reputação em que ela ficou durante tantos anos resguardou-a. Há aqui um potencial incrível e a nós interessa-nos projectos com conteúdo e conceito”. E a aposta vai continuar para 2014. Nos dois últimos andares do prédio da Pensão Amor -– que além do bar tem outros dois pisos ocupados com escritórios de pequenas empresas – vai nascer, “entre o Verão e o Inverno”, um museu erótico, com o coleccionador Paulo Moura, de Coimbra, a ceder o seu acervo para exposição.

No próximo ano, a revista Time Out também se muda definitivamente para o Mercado da Ribeira, promovendo uma série de actividades. Actualmente em obras, o objectivo é inaugurar “no final do primeiro semestre”, se possível coincidindo com as festas da cidade. De acordo com João Cepeda, director da revista, além da actual actividade tradicional do mercado, vai ser “criado uma sala de espectáculos, um espaço para feiras e mercados, outro de informação turística e uma forte componente gastronómica, com mini-restauração”. Tudo num conceito associado aos conteúdos da própria Time Out e que vai contribuir para um Cais do Sodré mais dinâmico e interessante.

alexandra.ho@sol.pt

SOL

quinta-feira, 16 de Janeiro de 2014